A partir de 1983, tendo já iniciado a parte profissional do Curso de Pintura na EBA/UFRJ, passei a me dedicar ainda mais intensamente ao meu aprendizado e ao desenvolvimento de uma linguagem pictórica pessoal. Com ou sem professor (vide texto anterior), de 2ª a 6ª feira começava a pintar às sete da manhã, quando o atelier era aberto, e só parava para almoçar ou assistir, à contragosto, alguma aula teórica. Mas geralmente só saia do atelier às seis da tarde, quando o administrador me expulsava.
O atelier de pintura, que então ficava no 7º andar, era bastante animado na parte da manhã, estando sempre cheio de colegas e visitantes curiosos, mas isso não me tirava a atenção do trabalho. À tarde o movimento caia bastante e, geralmente, só ficavam aqueles que realmente queriam trabalhar. Este era o momento mais produtivo para mim, pois eu, que morava em São Gonçalo, um município distante da faculdade (do outro lado da Baia da Guanabara), tinha que aproveitar ao máximo o tempo para criar, dar forma aos meus sonhos. Contudo, a "muvuca" não deixava de ser agradável e, enquanto pintava, ia interagindo com meus colegas num clima de trabalho e descontração muito positivo. Fiz boas amizades nesta época, que perduram até hoje.
Estava voltado, nesta ocasião, para o desenvolvimento de experiências técnicas e temáticas, ainda ligadas à fase anterior, mas já apresentando mudanças importantes. Algumas destas pinturas foram realizadas num contexto um tanto surrealista, enquanto outras eram mais soltas e despojadas. Queria sempre experimentar maneiras variadas de pintar assuntos cada vez mais diversificados, fantasiosos e diferentes. E com o aprendizado sobre técnicas e materiais que fui obtendo em disciplinas como Teoriada Pintura (na qual aprende-se a preparar telas e a lidar com técnicas tradicionais de pintura como as têmperas, a tinta a óleo, a aquarela, o afresco etc.) pude aumentar minhas possibilidades de experimentação pictórica.
Meus quadros desta época começaram a atingir um intenso colorido, o desenho tornou-se cada vez mais preponderante na organização das composições, as texturas mais variadas, a tela cada vez mais deixava de ser uma janela ilusionista para se tornar o suporte plano das minhas ideações plásticas. Movido pelo desejo de desenvolver ao máximo meu potencial como artista, me lancei ousadamente nestas experimentações pictóricas, não me preocupando muito se havia coerência entre os diversos resultados alcançados (hoje percebo que sempre existe uma ligação entre tudo o que faço).
Havia lido há algum tempo o "Livro dos Danados" de Charles Forte, no qual o autor faz uma espécie de inventário de coisas absurdas que aconteciam (e ainda hoje acontecem) pelo mundo afora e que são publicadas nos jornais: chuvas de sapos, de sangue, de peixes etc.; aparições e desaparições inusitadas, enfim coisas estranhas e, como diz minha mãe, do "arco da velha". Pois bem, este autor sustentava que deve existir algum lugar ao redor do mundo (eu diria em uma outra dimensão) caoticamente repleto de tudo o que se possa imaginar. E deste local proviriam as estranhas chuvas e outros fenômenos esquisitos e misteriosos que acontecem no nosso planeta.
Bem, com minha mente sempre ávida por mistérios, fiquei muito impressionado com estas idéias e resolvi utiliza-las como temas das minhas pinturas e desenhos. Daí surgiu a série "O Super Mar dos Sargaços" (nome que Charles Fort dava a este mundo paralelo), cheio de formas de animais assombrosos, asteróides, cometas e curiosidades turbilhonando no céu. As duas pinturas postadas com este texto, "O Caracol Emplumado" (óleo s/tela, 80 X 59 cm, 1984) e "A Tartaruga Centopéia" (óleo s/ tela, 75 X 58 cm, 1984) são dois exemplos bem-humorados, das criaturas exóticas que habitam este mundo estranho.
Nestas duas pinturas é flagrante o intenso uso do desenho para criar uma miríade de elementos decorativos como as volutas e espirais que flutuam pelo fundo das duas obras. As cores são utilizadas em sua máxima intensidade mas dentro de um equilíbrio que as mantêm num contexto harmonioso. Os "esfregaços" feitos com pincel macio sobre relevos especialmente preparados para este fim, são outra característica presente nestes quadros. E, além dos detalhes gráficos do fundo, chamo a atenção também para a "colcha de retalhos" sobre a qual passeia a "tartaruga" e para a carapaça e as plumas do "caracol".
Tudo isso somado serve, enfim, para valorizar o tom fantasioso do tema e também para torna-lo mais alegre e convidativo aos nossos olhos e imaginação.